Os filhos da edição genética

O conhecimento do ser humano acerca do seu próprio corpo evoluiu imensamente nas últimas décadas. Em busca de melhores condições de vida, cientistas lutam diariamente para encontrar respostas sobre os problemas que nos rodeiam. Nesta procura incessante pelo aprimoramento da nossa vida e do nosso corpo, o cientista chinês He Jiankui, pela primeira vez registrada na história da humanidade, permitiu o nascimento de bebês geneticamente modificados na fase embrionária por técnica de edição gênica. Nós estamos prontos, cientificamente e socialmente falando, para dar este passo na nossa existência?

Antes de mais nada, é importante saber que a maquinaria genética já é descrita e aplicada há mais de década para as deficiências do corpo humano. O primeiro caso aprovado de terapia genética nos Estados Unidos ocorreu em 14 de setembro de 1990, no Instituto Nacional de Saúde. Em 2002, este trabalho levou à publicação do primeiro tratamento de terapia gênica bem-sucedido para a deficiência de adenosina desaminase (SCID). Crianças afetadas com esta doença têm extrema susceptibilidade a infecções, que são fatais no primeiro ano de vida sem tratamento, e os tratamentos anteriores não permitia mais do que alguns anos de vida. A primeira terapia genética envolvendo uma fita de RNA de interferência, que impede a formação de uma proteína (neste caso, a tradução não ocorre), foi aprovada este ano (2018) para um tipo de amiloidose [1]. Contudo, estas técnicas existem após o desenvolvimento do feto, sendo usadas para tentar solucionar ou tratar doenças genéticas. E, mesmo elas, são suscetíveis a erros.  

A diferença entre edição gênica e terapia gênica pode recorrentemente ser confundida. Enquanto a primeira é uma técnica que tenta evitar as doenças, a segunda tenta tratar as doenças. A terapia gênica, como o nome sugere, é um tratamento para falhas genéticas em seres humanos (já desenvolvidos), que por si só é um tratamento que pode envolver altos riscos. No entanto, em muitos casos, é usado para doenças onde os demais tratamentos não oferecem melhores condições de vida, e a expectativa de vida já é muito baixa. Quando falamos de edição gênica, falamos de modificar o DNA de um embrião, que ainda nem mesmo chegou ao desenvolvimento para ser chamado de feto. A eficiência desta técnica deveria ser de praticamente 100%, bem como testes em células e em animais através de modelos de estudo fortemente validados e consolidados. Além disso, envolvemos um fator ético de manipular a assinatura de vida de um ser humano antes mesmo do seu nascimento.

A edição gênica utilizada pelo pesquisador chinês, se vale da ferramenta de modificação genética CRISPR-Cas9 para clivar regiões específicas do DNA e manipulá-lo.  Cas9 é uma proteína capaz de cortar a fita dupla de DNA, como se fossem duas tesouras, sendo direcionada para a região “certa” a partir de uma fita de RNA chamada de RNA guia. Este RNA guia liga-se ao DNA e permite a atividade da Cas9. O problema desta técnica é que nem sempre o RNA liga-se na região correta, levando a modificações genéticas inespecíficas e não intencionais (a esse efeito dá-se o nome de “off target”), onde Cas9 iria atuar erroneamente.

Tendo todos estes conhecimentos prévios, chegamos à discussão central do nosso texto: He Jianku, sabendo de todos estes fatores, tomou a decisão certa?

O objetivo deste pesquisador foi cortar (inativando) o gene CCR5, que codifica uma proteína que permite a entrada do vírus HIV na célula. Ele disse que o objetivo do trabalho não é impedir a transmissão dos pais, mas oferecer aos casais afetados pelo HIV a chance de ter um filho que possa ser protegido de um destino similar [2].

Embora aparente ter uma causa nobre, a pesquisa de He envolve um fator altíssimo de risco, justamente pelos possíveis erros de cortes em regiões errôneas de DNA, levando a problemas que podem ir desde malformações e disfunções nos sistemas do corpo, a câncer e problemas neuronais presentes no resto da vida, sentenciando alguém a estes problemas antes mesmo de seu nascimento. Pesquisadores publicaram a quantidade relativamente alta de erros devido à técnica, demonstrando que ainda estamos longe do ideal para partir à manipulação em embriões [5]. Paula Cannon  [2], que estuda o HIV na Universidade do Sul da Califórnia, diz que algumas cepas de HIV nem mesmo usam essa proteína para entrar nas células, usam outra proteína chamada CXCR4. Desse modo, a técnica nem mesmo garante a inviabilidade da doença. O pesquisador de RNA Sean Ryder ainda ressalta que as regiões de corte do DNA manipuladas por He não foram estudadas previamente em modelos animais [3], colocando uma propensão a erro ainda maior. E, para piorar a situação, existem estudos que demonstram que o silenciamento deste gene CCR5, inativado por He, pode levar a perda de função de memória [4].

Embora existam diversos estudos acerca da técnica de CRISPR, e a modificação genética como um todo tenha potencial para solucionar diversos problemas, ainda há muito a ser estudado. O conhecimento precisa ser consolidado, antes de ser aplicado em nossas vidas. A ciência existe para resolver nossos problemas existentes, e não criar novos. Não se pode testar a sorte, como se fosse um jogo - não podemos brincar de dados com a vida.

Falaí Biotec - 02/12/2018

Referências:


[1] https://cib.org.br/silenciamento-genico/
[2] Genome-edited baby claim provokes international outcry - David Cyranoski & Heidi Ledford
[3] First CRISPR babies: six questions that remain - David Cyranoski
[4] Hwang CJ, Park MH, Hwang JY, et al. CCR5 deficiency accelerates lipopolysaccharide- induced astrogliosis, amyloid-beta deposit and impaired memory function.  Oncotarget. 2016;7(11):11984-99.

[5] Repair of double-strand breaks induced by CRISPR-Cas9 leads to large deletions and complex rearrangements. - Kosicki M., Tomberg K., Bradley A.

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